terça-feira, 4 de março de 2008
(atenção: este é um cadiinho mórbido!)
Dei comigo a pen(s)ar. E gostava de partilhar isto convosco, porque fez-me pensar longamente em tudo o que vale a pena. E vocês valem-me a pena :)

«A vida modifica-se rapidamente.
A vida modifica-se num instante.
Sentamo-nos para jantar e a vida, como a conhecemos, acaba.

Foram estas as primeiras palavras que escrevi depois do que aconteceu.
A data da modificação do ficheiro do Microsoft Word, indicada no computador, é a de 20 de Maio de 2004, onze horas e onze minutos, mas deve ter sido resultado de eu ter aberto o ficheiro e instintivamente clicado em «gravar» quando fechei. Não fiz modificações nesse ficheiro, em Maio. Não fiz modificações nesse ficheiro desde que escrevi aquelas palavras em Janeiro de 2004, um ou dois dias após o acontecimento.
Não escrevi mais nada durante um longo período de tempo.

A vida muda num instante.
O banal instante.


A certa altura, com a intenção de recordar o que me parecia mais chocante no que acontecera, pensei acrescentar estas palavras: «o banal instante». Vi imediatamente que não havia necessidade de acrescentar a palavra «banal», já que não se punha a questão de o esquecer: o instante nunca me sairia da mente. De facto, foi a natureza banal de tudo o que precedeu o acontecimento que me impediu de acreditar verdadeiramente que aquilo acontecera, de o absorver, incorporar e superar. Reconheço agora que não foi nada invulgar: confrontados com uma catástrofe súbita, todos nós nos concentramos em quão prosaicas foram as circunstancias em que o impensável aconteceu, o céu azul e límpido donde caiu o avião, a incumbência rotineira que acabou com um carro em chamas, os balouços onde as crianças estavam a brincar como de costume quando a cascavel escondida na hera atacou.
«Ia a caminho de casa depois do trabalho – feliz, realizado, saudável – e a seguir, morreu», li no relatório de uma enfermeira psiquiátrica cujo marido morrera num acidente na auto-estrada.
Em 1966, aconteceu entrevistar várias pessoas que viviam em Honolulu na manhã de 7 de Dezembro de 1941; nos relatos sobre o Pearl Harbor, todas aquelas pessoas, sem excepção, começavam por dizer-me como fora «uma bela manhã de domingo».
«Era simplesmente um belo e banal dia de Setembro», continuam as pessoas a dizer quando solicitadas a descrever a manhã em Nova Iorque em que o voo 11 da American Airlines e o 175 da United Airlines se esmagaram contra as torres do World Trade Centre. Até o relatório da Comissão do 11 de Setembro abre com esta observação narrativa, premonitória mas que nos emudece: «terça-feira, 11 de Setembro de 2001. O dia nasceu ameno e praticamente sem nuvens na região leste dos Estados Unidos.»
«E a seguir… desapareceu.» Em plena vida estamos com a morte, escrevem os episcopalianos nas suas pedras tumulares.
Não tenho ideia de ter contado a alguém os pormenores, mas devo tê-lo feito porque toda a gente parecia estar a par do assunto. A determinada altura, considerei a possibilidade de terem sabido dos pormenores uns com os outros, mas imediatamente a rejeitei, uma vez que, em todos os casos, a história era demasiado exacta para ter passado de boca em boca. Viera de mim.
Outro motivo pelo qual fiquei a saber que a história viera de mim foi que nenhuma das versões que ouvi incluía pormenores que eu ainda não conseguia enfrentar, por exemplo, o sangue no chão da sala, que lá ficou até José vir na manhã seguinte e o ter limpo.

Em Linhas gerais.

Estamos a 4 de Outubro de 2004 quando começo a escrever isto.
Há nove meses e cinco dias, aproximadamente pelas nove horas da noite de 30 de Dezembro de 2003, o meu marido, John Gregory Dunne, pareceu ter ou teve, à mesa onde ele e eu tinhamos acabado de sentar para jantar na sala do nosso apartamento de Nova Iorque, um súbito acidente coronário que lhe causou a morte. A nossa filha única, Quintana, nas cinco noites anteriores, esteve inconsciente na Unidade de Cuidados Intensivos da Divisão Singer do Centro de Saúde Beth Israel, que, à época, era um hospital situado na East Avenue, conhecido geralmente como «Beth Israel North» ou «o Hospital dos Médicos».


Dia 30 de Dezembro de 2003, uma terça-feira.
Víramos Quintana no sexto piso da UCI do Beth Israel North.

Havíamos regressado a casa.
Tínhamos posto a questão: sair para jantar ou comer em casa.
Eu disse que ia acender a lareira, podíamos comer em casa.
Acendi a lareira, comecei a fazer um jantar, perguntei a John se queria uma bebida.
Arranjei-lhe um uísque e dei-lho na sala, onde ele estava a ler no cadeirão ao pé da lareira e onde habitualmente se sentava.
Estava a ler as provas do livro de David Fromkin,
Europe’s Last Summer: Who Started the Great War in 1914?
Acabei de fazer o jantar e pus a mesa da sala, onde, quando estávamos sozinhos em casa, podíamos comer a olhar para a lareira. Fui atiçar o fogo, porque dávamos muita importância à lareira. Nasci na Califórnia e John e eu vivemos lá durante vinte e quatro anos e, na Califórnia, aquecemos as casas acendendo lareiras. Acendíamos a lareira mesmo nas noites de Verão, porque havia nevoeiro. A lareira dizia-nos que estávamos em casa, que tínhamos completado o círculo, que passaríamos a noite em segurança. Acendi as velas. John pediu outra bebida antes de se sentar à mesa. Dei-lha. Sentámo-nos à mesa. Concentrada, pus-me a mexer a salada.
John estava a falar e, no momento seguinte, já não.
A certa altura, nos segundos ou no minuto antes de deixar de falar, perguntou-me se eu usara uísque de malte na segunda bebida. Disse-lhe que não, tinha usado o mesmo uísque que na primeira bebida.
«Óptimo», disse ele. «Não sei porquê, mas acho que não deves misturá-los.» A determinado momento desses mesmos segundos ou desse minuto, estivera a falar sobre o motivo por que a Primeira Guerra Mundial era o acontecimento crítico do qual fluía todo o resto do século XX.
Não faço ideia do assunto em que estávamos, se no uísque, se na Primeira Guerra Mundial, no instante em que deixou de falar.
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por David a 4.3.08 | Permalink |


1 Comments:


  • At março 06, 2008, Blogger verinha:)

    Bem demorou a ler este post... porque sim, é ENORME!! Mas prontos, valeu a pena!!
    ...agora estou ansiosa pela continuação...
    Uma coisa ficou bem presente:

    "A vida muda num instante"
    ...num bater de asas!!

    Obrigada pela IMENSA partilha :)*